sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Encontro

"- Na primeira vez que te vi,
sabia que tu ia ficar comigo.
- Sabia como?
- Bah, eu sabia.
- Te contar: eu também sabia.
- Então. Essas coisas a gente sabe."



Eu o conhecia há três dias e de repente estava ali, parada diante do quarto dele, um dos pés na iminência de um recuo e o outro avançando para o interior de uma vontade súbita que não fiz a mínima questão de coibir - a vontade do meu corpo, concentrada nos dedos que escorregavam audaciosos do terreno da razão para confluir num toc-toc-toc rápido, quase tímido, anunciando-me do outro lado da porta. Aquela noite era diferente das outras. Naquela noite, eu queria mais. Mais do que a lembrança enviesada de uma história complicada cujo fim sobreveio antes mesmo do começo. Mais do que alguém inventado. Mais do que um cálice diário de expectativas irreais. Naquela noite, eu queria presença. Toque. Cheiro. Gosto. Cor. Hálito. Queria de um querer súbito e sem polimentos, e eu instintivamente sabia que era dessa forma que ele me queria também. Por isso, quando pretextei sono e inventei que iria dormir, eu sabia que ele não permitiria que eu saísse dali. E, quando ele me segurou forte os braços e me umedeceu deliciosamente a boca com o beijo mais perfeito que eu jamais imaginara, eu sabia que aquela noite estava apenas começando - e que, ao longo dela, não haveria script, nem limites, nem perguntas, nem explicações: haveria apenas dois corpos entregues ao chamado misterioso e quente dessa coisa avassaladora chamada desejo, confundindo-se um no outro entre carícias e suores e gemidos, acumpliciados na intimidade rubra e inteiriça da languidez ofegante que, pouco a pouco, sereniza entre rostos unidos e membros entrelaçados, ambos entorpecidos pela sensação do prazer mutuamente proporcionado, desafiando a exaustão do corpo entre delícias que insistiam em interminavelmente recomeçar. Foi assim que, enquanto o dia amanhecia, adormeci nos braços dele com meus lábios ainda colados aos seus, cada centímetro meu inteiro marcado por cada centímetro daquele homem, minha cabeça repousada no seu peito enquanto meus olhos descansavam embebidos naquele sorriso lindo. "Agora você é minha", a voz preguiçosa brincando nos meus ouvidos, tatuando na minha memória o sotaque gostoso do Rio Grande do Sul. E agora, ainda, as marcas dessa noite perfeita fazem pouso na minha pele e na minha lembrança, e me dizem que as melhores coisas da vida são as inesperadas, aquelas que acontecem sem muito planejamento e que nos levam em determinada direção quando tudo parece nos encaminhar a outra. É essa a matéria do ininteligível. E, igualmente, é essa a matéria do inesquecível.


Primeira postagem diretamente do Paraná,
iniciando a nova temporada em grande estilo ;)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Sinal de Fumaça

E então, pessoas, se comportando bem na minha ausência?
Pois bem, eu não morri, mas a minha vida anda de cabeça para baixo - mudança de emprego, de cidade, de estado (uma sílaba pode fazer muita diferença, do Pará passei a morar no Paraná), de rotina... e por conta desse período de turbulência trans-adaptação, vou passar mais algum tempo sem internet e, por consequência, sem atualizar esse blog. Assim, que puder, volto a ser uma blogueira decente ;)
Saudades de todos, sem exceção. Muita saudade.
Um beijo!

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

E Você, Já Conhece o E-Blogue?

Queridões, é o seguinte.

Existe muita gente de talento aqui nessa blogosfera. E a Internet, a gente sabe, ao mesmo tempo que permite levar informação pra tudo que é canto do planeta, acaba dissolvendo muito conteúdo legal no meio desse turbilhão. Pois bem: partindo da idéia de que o que tem qualidade precisa ser mostrado e divulgado, a Jana Lauxen e o Afobório criaram o E-Blogue - um zine semanal destinado à divulgação do que é bom, de quem tem algo a dizer, seja através de textos, fotos, vídeos e o que mais vier. O recado dos editores é claro:


Cada um mostra o que tem para mostrar – e este é um raciocínio lógico.

Alguns se mostram escrevendo, outros desenhando, tirando fotos, fazendo música, fazendo pose, dançando, pensando, moldando, costurando, criando, filmando, pintando.

Outros ainda mostram seus diários. Suas invenções. Suas idéias. Seus carros. Suas festas. Suas tristezas. Suas fotos. Suas paixões. Suas coisas.

Tem até aqueles que preferem não mostrar coisa nenhuma.

E seja lá em qual categoria você se enquadrar, nós estamos atrás de pessoas como você.


Quem curte "saparada" de arte e quiser, pode - e deve participar. Basta acessar o site e entrar em contato com os editores - e, dependendo de como quiserem participar, ingressar no projeto como colaboradores ou como E-spiões (o que é isso vocês descobrirão 'in loco'), ou de várias outras maneiras igualmente legais. Eu já estou por lá, junto com Luiz Calcagno, Fabrício Romano, Beto Canales e outros. E vocês, estão esperando o quê?


Beijos a todos, tenham um excelente fim de semana !

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Até Que A Sorte Nos Separe

Afinal, ninguém precisa ser perfeito para ser o par perfeito.

Soundtrack: Ingrid Michaelson - The Way I Am



Eu lhe prometo ser fiel na alegria, na tristeza e em todas as rodadas do Brasileirão mesmo que o seu time 6 vezes campeão nacional seja hipoteticamente rebaixado para o grupo B – mas aviso logo: vai ser difícil segurar as piadinhas e eu sei que no meu lugar você faria o mesmo, então não fique rebelde caso um dia isso realmente venha a acontecer. Aliás, falando em vir, da próxima vez que convidar seus amigos para assistir aos jogos em casa, diga ao Betão que a mesinha da sala não é depósito de lixo tóxico e que todos nós teríamos mais qualidade de vida se ele lavasse aquele tênis horroroso de sujo pelo menos uma vez por semana, como é que pode um homem daquele tamanho ser assim desleixado, cruzes, mas enfim, esse assunto fica pra outro dia, o que era que eu estava dizendo mesmo?

Ah, sim, falando em prometer... eu ia dizer que de bom grado prometo, sim, segurar a sua mão naquelas noites em que o mundo inteiro vira chuva e desaba sobre o telhado porque sei que você tem medo de trovões, e deixar você dormir do lado direito da cama, e dividir com você as minhas batatinhas fritas e a pipoca do cinema – mesmo que você teime em comprar entradas para um desses filmes toscos em que voam socos, pontapés e gente morta ou estropiada por todos lados, fazer o quê. Eu prometo te emprestar o meu xampu e (eventualmente) não deixar calcinhas no box. Eu prometo estar com você quando Maomé não for à montanha mas a montanha for a Maomé, ou quando Judas finalmente encontrar as botas que perdeu, ou quando o mar virar sertão, o sertão virar mar e o camelo passar pelo buraco de uma agulha e, sobretudo, eu prometo ficar ao seu lado e sorrir o seu sorriso preferido quando a vida parecer ter se transformado em uma grande piada de mau gosto e as coisas podem até pecar no quesito leveza, mas estaremos juntos e descobriremos juntos que o diabo não é tão feio quanto parece.

E não lhe ofereço nem aliança nem nada de tão específico como prova do meu amor e da minha fidelidade porque você sabe, eu fico tiririca com esse negócio de ter que provar amor. E, como mentira me dá urticárias, ui, não posso nem pensar, deixo claro que vou continuar reclamando da toalha molhada sobre a cama e da tampa levantada do vaso sanitário, e também da louça acumulada na pia nos dias em que a diarista não vem, e dos copos que você larga em qualquer lugar, custa passar uma água?, e sem dúvida eu vou continuar reclamando (e muito) da cara esfomeadamente terrorista que você faz quando olha pros peitos da filha do aposentado do 612, aquela que usa uns vestidos tão curtos que deixam ver até a consciência se é que ela existe – pensou que eu não tinha percebido, hein, mas sobre a mocréia a gente conversa baixinho depois.

E certamente vou continuar me fazendo de surda quando você insistir que eu pare de falar com aquele ex-namorado lindo, charmoso, inteligente e bem-sucedido no ramo de empreendimentos imobiliários, mas quer saber? Nada disso faz a menor diferença. Talvez eu nem tenha tido alternativa, o meu coração leva tão a sério essa coisa de livre arbítrio que não me deixou dar muito palpite quando escolheu amar você pela vida inteira. E eu, que às vezes acho que ele não poderia ter sido mais irresponsável, quando olho para o lado e vejo você dormindo, tranquilo, com a cara feliz de quem está sonhando não com os anjos mas com um séquito de coelhinhas da Playboy, tenho certeza de que ele acertou em cheio. Porque você está longe de ser um príncipe encantado. Mas só você é você, e eu gosto assim.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Obscurinfinitomeu

"Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, então nossas
vidas contrapõem-se a ele em toda a sua esplêndida leveza.

Mas será o peso de fato deplorável, e esplêndida a leveza?"

Milan Kundera, em A insustentável Leveza do Ser

Soundtrack: Vienna Teng - Gravity




Eu me lembro da primeira vez que lhe disse “acredite” – e os seus olhos deitados sobre o meu pedido eram tão nus e esquálidos que desejei vesti-los com os milagres guardados no fim de alguma estória contada pela metade, mas o fim não chegou porque a vida o partiu ao meio e o milagre ficou por acontecer, e quem sabe ele lhe servisse alvo e quente como uma luva. Quem sabe, é tarde, mas ainda há tanto chão sob essa paz esgazeada e nodosa que não é paz, é quase como o reflexo dos pecados do mundo nas contas de vidro do terço da mulher que, de joelhos, reza todas as tardes da boca para fora, é algo faltando, uma coisa mal expiada, fermentada, um jeito subalterno de ser feliz. O que, de fato, acaba não sendo jeito algum, acaba sendo só mais uma dolorosa iminência, e é aí que nos falta o ar porque a superfície se escondeu além das nossas, das suas narinas trôpegas, eu não me afogo nessa ausência, então você decide se vem comigo ou não – mas decida agora pois o instante seguinte não pode esperar. Porque eu guardo dentro do peito um lugar que até para mim é obscuro e onde cabemos os dois mas eu não vou pedir que você venha, eu não vou pedir nada, é a sua vez de cortar os pulsos e perceber que a dor não mata nem cega, tudo se refaz. É a sua vez de rasgar as próprias roupas e se cobrir das próprias nódoas e descobrir que elas já lhe não servem e sequer mascaram as suas aflições, elas apenas ditam roucas e obsoletas tendências, elas acanham e mutilam a sua necessária e mais íntima nudez, mas tem de ser agora. Tem de ser agora, que o instante seguinte não pode esperar. Eu poderia, eu posso, carregá-lo nos meus ombros quando você desfalecer de cansaço nesse caminho que é longo e demais acidentado, eu poderia, eu posso, subverter essa insegurança queimosa que lhe fere a boca de bolhas e não o deixa falar mais alto que a inércia. Mas sentar aqui nesse chão atapetado de juízos-perfeitos inodoros como flores de plástico, isso eu não poderia, não posso, é insalubre. É como correr em volta do passo em falso alheio, é estéril. Eu não respiro esse cheiro artificial de dia que se esconde supersticioso sob os degraus cobertos de pó por medo de estilhaçar o espelho e ferir-se todo com os cacos da própria imagem há tempos banida e enfim libertada, ainda prefiro meu peito rasgado sem dó, jorro vermelha e sangro até viver. Porque algumas delicadezas, na verdade, não passam de dissimuladas agressões.


sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Aleatoriedades e Pecados, Pecados e Aleatoriedades

Soundtrack: Grand Funk Railroad - Bad Time



E juro que depois de contar 101 coisas sobre mim (o segundo post mais lido da história deste blog segundo o ranking aí ao lado) achei que não tivesse sobrado nada debaixo do tapete mas, como o Rafa, a Cris 1, a Cris 2, o Monday, o Felipe, o Ric@ardo e a Ju me passaram outros deveres de casa tão confessionais quanto, fui atrás de informações extras e cá está o resultado:

6 fatos aleatórios sobre mim:

1. Sempre erro ao digitar a palavra "assim". A primeira tentativa sempre cospe um "asism".

2. Tenho infinitos diários, escritos dos 12 aos 22 anos, guardados a sete chaves dentro de uma caixa de madeira pintada com girassóis.

3. Já sonhei com os números (certos) da mega-sena. Como vocês podem ver - afinal vivo assalariadamente - eu não apostei.

4. Nasci em Belém, mas só passei a morar em Belém aos 22 anos.

5. No dia da inscrição para o vestibular desisti de cursar jornalismo e me inscrevi em medicina. Não me arrependi.

6. Corto cabelo e pinto. Dependendo da situação, a ambiguidade pode ser verdadeira.


Meus 7 pecados capitais:

Inveja: do estômago de avestruz da Giselle Bündchen, que come o que quer e quanto quer e continua com aquele corpinho de caniço.

Ira: súbitas e fulminantes como um raio (afinal sou canceriana) mas com memória de passarinho: rapidamente passageiras.

Gula: bombom Sonho de Valsa e a comidinha da minha mãe. E China In Box com coca zero. E sorvete.

Preguiça: de malhar. Ai, que preguiça de malhar.

Luxúria: bem... eu sou de carne e osso, minha gente...

Soberba: olha, eu tenho um p* orgulho da minha família.

Avareza: Esse eu definitivamente não vai me fazer ir para o inferno. Dinheiro na mão é vendaval.


Passo os dois memes para quem quiser fazer. Fiquem à vontade.


E, pra não dizer que não falei de flores, o pitaco musical para o fim de semana é uma banda que eu adoro, Grand Funk Railroad - que, ao contrário do que o nome sugere, não tem nada a ver com funk: foi uma banda chegou a ser uma grande sensação do rock setentista nos EUA, junto com Led Zeppelin, Deep Purple e outros. Embora invariavelmente massacrados pela crítica conservadora, acostumada a baladas bem comportadas, o grupo foi batendo todos os recordes, com discos de ouro e de platina a cada álbum lançado, e seus integrantes alçados à categoria de ícones da contra-cultura americana. Bad Time, faixa do álbum All the Girls In the World Beware!, se tornou a música mais tocada em 1975 e o disco foi o décimo consecutivo a ganhar ouro. Fica a dica.

No mais, excelente fim de semana pra todo mundo!


quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Das Pausas

Eu, aqui.

Soundtrack: Priscilla Ahn - Dream




Eu saberia se não fosse minha a hora de parar e apenas ficar – assim parada, apenas ficando. Sem compromisso com um porquê ou um onde. Sem creditar essa aparente inércia a um desmaio da coragem de ir, porque não é preciso ir a algum instante para prosseguir, e eu prossigo tanto nessa quietude de corpo imóvel vibrando, eu prossigo tanto. Eu abro a boca e entro por ela, e isso não é morte, é fôlego. Inversão, meu invólucro. Minha liberdade. Esquiva, uterina. Porque nem sempre que olho em volta estou convidando a vida para um café, nem sempre que atravesso a rua pretendo chegar a qualquer destino, às vezes desejo apenas uma inexistência tenra, um anonimato relapso, um quase desconhecimento de mim. Porque cansa. Cansa ter que carregar um nome o tempo todo e ser batizada por tantos apegos e conflitos e memórias e isso não é sofrimento algum, é apenas um cansaço liso dessa minha impaciência voraz - e eu ainda não sei se esquecer é um luxo para poucos ou se lembrar demais é que é frivolidade, carregar assim o que o corpo pede pra abandonar numa estação qualquer mas a cabeça diz não e não, e segue levando até sabe Deus quando. E eu, que só queria desaprender certas coisas, continuo incorporando diligentemente conhecimentos dos quais não necessito. E no entanto, ainda assim, desejo cruzar comigo pelas ruas e me encantar com os meus traços e com o balanço boêmio dessa curiosidade minha pueril e nunca satisfeita, e me perguntar quem sou e dizer, flertando olhos-nos-olhos, que foi uma sorte me encontrar numa inóspita fila de supermercado ou no beco gelado que existe no vão entre duas ideias, eu que vivo em grave contenda comigo mesma e sou adversário audaz que não espera nem espreita, me olho de frente, mas quero trégua. Paz.


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UPDATE: hoje com player, mas outro dia eu volto pra falar da Priscilla Ahn. E não, a pausa em questão, dessa vez, não é uma pausa do blog ;)


segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Eu Hoje Passei Para Dizer "Bom Dia"

Oi.

Soundtrack: Adele - Chasing Pavements



Eu hoje passei para dizer “bom dia”. E não é que não haja mais nada a dizer, é que apenas tive vontade de bater na sua porta e interrompê-lo na leitura dos jornais ou no ritual de arrumar as fatias de pão na torradeira para dizer “bom dia” e, antes que você tenha chance de calçar os sapatos, ou de checar as horas no relógio da parede da cozinha pela terceira vez, ou de me olhar com cara de “que diabos você está fazendo aqui a uma hora dessas” eu digo: ouça. Porque eu passei para dizer “bom dia” mas eu, você conhece bem, nunca sei ao certo como dizer as coisas mais simples, essas coisas eu sorrio, ou assobio, ou as cometo indelicadamente com os cantos dos olhos e mordendo os lábios, você conhece bem. Não é? Você conhece. Então esqueça os ponteiros do tempo em meio à louça suja na pia e largue a desconfiança na calçada junto com o lixo da manhã, e ouça os meus gestos, ouça, me ouça olhar para você e falar pelos cotovelos assim, muda. Eu desisto de qualquer audácia que negue esse silêncio confessional portanto não olhe para a confusão que perpassa em cores estranhas pela sua cabeça, olhe para mim, para mim. Apenas para mim e para esse repente pontuado das vontades que antes secavam ao sol, eu as tirei dos varais antes que morressem e elas agora vicejam aqui dentro, você conhece bem. Não é? Você conhece.

Você conhece e, porque conhece, eu não preciso inventar uma maneira sã e razoável de verbalizar todas essas vontades que vicejam aqui dentro e irrompem um tanto quanto inapropriadas, mentira, eu não verbalizo porque, mesmo que quisesse, eu não saberia ou não quereria, tanto faz. Eu não tenho esse dom. Entende? Eu não sei dar nome ao que sinto sem que a minha língua se choque suicida contra a primeira vírgula, sem que os meus dentes imediatamente arranquem pedaços da minha voz. E eu não sei se isso é certo ou se é errado, se é bom ou se é ruim, sei que isso sou eu e até hoje não encontrei um jeito mais fácil de ser eu, um jeito que não seja essa combustão de sentimentos, eu não sou cerebral, o que sou é isso que está na sua frente – um emaranhado de intenções que saltam afoitas pelas polpas dos meus dedos em busca de tatear o sorriso que você está contendo por trás dessa amenidade quase formal e minuciosamente calculada, homem, eu também conheço você. Eu conheço e você me conhece, e você sabe que eu hoje passei por aqui para dizer “bom dia” mas que eu não vim dizer “bom dia” coisa nenhuma, que essas minhas pernas fincadas diante da porta estão esperando que você apenas cruze a linha, e que esse silêncio, olhe para mim, esse silêncio na verdade está gritando “que diabos você está fazendo aí parado do lado de dentro enquanto aqui fora o mundo espera pra ser seu e eu também?”


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Adele é uma jovem cantora britânica cuja voz forte chamou a atenção do publico e da crítica, levando a moça ao topo das paradas britânicas já no álbum de estréia, lançado em 2008 e intitulado 19, do qual faz parte a faixa Chasing Pavements. Entre suas influências musicais estão nomes importantes como Etta James, The Police, Marvin Gaye e Billie Holiday.

A vocês, meus queridos, bom dia - seja dia ou noite!

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

13º Andar

Publicado originalmente no
Novas Visões,
em junho de 2008.


Soundtrack: The Doors - The End




Entrou em pânico quando percebeu que ela, de fato, não respirava. A flacidez fria daquele rosto pequeno, de traços levemente orientais, subitamente assumira uma assustadora lividez, anúncio de uma realidade tão inesperada quanto irremediável. Morta. Sentiu o sangue congelando de imediato nas veias ao contato daquele corpo inerte, o coração prestes a se despedaçar tão descompassado se havia tornado. Adormecera bêbado ao lado de uma desconhecida no quarto mofento de um hotel vagabundo e acordava desagradavelmente sóbrio, nu, dividindo a cama com um cadáver – circunstância que o nauseava, embora não conseguisse se afastar dali nem desviar os olhos da mulher. Que teria acontecido? Perplexo, imerso numa desorientação que o mantinha preso ao colchão desarrumado com cheiro de bebida, observou o terrível contraste entre os cabelos escuros e a pele muito clara já vencida pela palidez mórbida da morte, os seios pequenos e rijos repousando sobre o peito imóvel. Morta. Não ouvira gritos, não notara quaisquer indícios de suicídio – ela não parecia mesmo o tipo de mulher disposta a se matar. Sem sinais de violência, sem marcas de qualquer natureza, sem nada. Absolutamente nada. Apenas morta.

Como se chamava mesmo, Virgínia? Vanessa? Valéria? Bianca? Nem guardara o nome, não o ouvira mais de uma vez desde que se haviam encontrado naquela boatezinha chinfrim de periferia. Ela era bonita, parecia uma índia de pele branca, o corpo apertado num vestido transpirando vulgaridade e luxúria, o desejo queimando nos olhos oblíquos semi-ocultos pelos cílios pesados de rímel. Fora dela a sugestão do hotel, fizera o convite em meio a beijos lascivos regados a muito álcool. Abriram a porta do quarto cambaleando, às gargalhadas, ela segurando nas mãos uma garrafa de tequila, ele já demasiadamente tonto, tentando arrancar-lhe o vestido. Beijos, carícias, goles, goles, goles. Depois mais nada, lembrança alguma. Apagara. Esforçava-se para compreender o que teria acontecido, o suor escorrendo pela testa gelada, a respiração ofegante e curta, o olhar acorrentado a um ponto situado entre o coerente e o inverossímil em qualquer lugar no encardido da parede, que teria acontecido? Tudo era confuso, borráceo, esdrúxulo, aquela mulher morta, aquela droga de hotel, aquele embrulho no estômago, mistura de náusea, ressaca e medo, aquele silêncio de tumba violentado pelo som da sua própria respiração, que teria acontecido? O medo maior era de tê-la matado. Tornado-se um assassino. Por que mataria aquela mulher? Matara aquela mulher? Aquela merda de silêncio. Aquela merda de silêncio e de repente trrrrrrim! – chicoteando-lhe os ouvidos, sacudindo-lhe o corpo num pulo, a mão indo parar sobre o seio já semi-enrijecido, ele se assustando com a textura do corpo, nojo, náusea, medo, a bola no estômago irrompendo garganta afora, vou vomitar, banheiro, merda de telefone. Tarde demais, o peito sujo, o colchão sujo. Fétido, tudo fétido, o quarto, ele, ela, a situação, tudo fétido, tudo sujo. Tudo demasiadamente sujo.

Banheiro. A água escorrendo pelo corpo, gelada como aquele cadáver. Tão gelada. Merda de telefone, quem teria ligado, alguém procurando por ela? Depois perguntaria à recepcionista. Tentou relaxar um pouco durante o banho, era boa aquela sensação dolorosa de frio – estava tão entorpecido que precisava sentir alguma coisa. A água escorrendo pelo corpo, o seu. Era bom. Acabou perdendo a noção do tempo absorvido no banho, a sensação já não era de dor, transformara-se em quase redenção. Fechou as torneiras, apanhou a toalha já usada, enxugou lentamente o rosto, a toalha pouco a pouco desnudando os olhos em frente ao espelho, o interior do quarto se esgueirando na sua superfície lisa. E o coração descompassado outra vez, o sangue congelando, o medo, o impossível estampado naquele reflexo – a cama desarrumada, a sujeira, a bagunça, e só. Ela havia desaparecido.

Ela havia desaparecido. O corpo havia desaparecido.

Largou a toalha no chão e, atônito, as pernas trêmulas, verificou a porta do quarto: trancada. A chave permanecia intocada sobre o criado-mudo. Entrar pela janela e carregar um cadáver através dela? Impossível, era o 13º andar. Nada fora mexido; as coisas da morta continuavam espalhadas pelo piso do cômodo. O telefone tocando novamente. Atendeu, do outro lado da linha só o silêncio, desligou, precisava se acalmar, onde afinal teria ido parar aquele maldito corpo? Outro trrrrrrim irritante e fora de hora, atendeu, outro silêncio. Palhaçada. Discou para a recepção.

- Olha, não sei o que está acontecendo aqui. Mas há um engraçadinho testando a minha paciência ao telefone, então não transfira mais chamada nenhuma para o 1303, entendeu?

- Desculpe, senhor, mas não houve nenhum chamado para o 1303.

- Escuta, querida, acabei de atender ao telefone pela terceira vez. Não estou louco.

- Lamento, senhor, realmente não houve nenhum chamado. Se o senhor preferir, podemos...

Desligou com ódio da recepcionista, nem esperou que concluísse a frase. Confuso, apavorado, perdido, a mulher praticamente o chamara de louco, se queixaria ao gerente daquela vagabunda. O corpo. Que acontecera ao corpo? Outra vez, trrrrrrrrim, trrrrrrrrim, muitas vezes, não atenderia, atendeu: uma gargalhada... seria possível? Ele vira, tocara, ela estava morta – mas era ela, conhecia aquela gargalhada... era ela, sim, era ela! Como podia? Sentiu o corpo desfalecer e desabar sobre o chão, a mão direita procurando aflita pelo gancho do telefone que rolara para baixo da cama, precisava falar com ela, balbuciou um “alô” quase inaudível, tarde demais: a chamada fora interrompida. Precisava falar com alguém ou ficaria louco de verdade, discou para a polícia, desistiu, discou para a esposa, desistiu, falaria o quê? Que uma desconhecida com quem havia transado durante a noite e que supostamente fora morta por ele o estava assombrando ao telefone? Agora ouvia passos no corredor, lentos, ritmados, batidas na porta, não abriria, queria sumir, o peito explodindo, a bola no estômago voltando a crescer, o telefone, trrrrrrrrim, o chuveiro ainda aberto, a água escorrendo gelada como aquele cadáver, passos, trrrrrrrrim, toc-toc, passos, trrrrrrrrim, toc-toc, passos, trrrrrrrrim, toc-toc... trrrrrrrrim, toc-toc...

Acordou coberto de suor, ainda sob o impacto do sonho; ao fundo, o som estridente do despertador do telefone celular, gritando numa insistência irrequieta. Maldita tequila. A mulher devia estar no chuveiro, podia ouvir o som das torneiras abertas. Olhou em volta: uma garrafa vazia abandonada num vão entre o criado mudo e o guarda-roupa. Ao lado, a carteira. Sentia as pernas bambeando, a cabeça latejante de uma explosão iminente, o estômago embrulhado, um torpor horrível. Horrível. Meio tonto, venceu a resistência do próprio corpo e cambaleou até o interruptor; o súbito clarão amarelo turvou-lhe a vista por alguns segundos, as coisas pouco a pouco assumindo formas inteligíveis. A carteira! Atirou-se a ela num ímpeto, abriu: vazia. A mulher limpara até as moedas. Ela provavelmente pusera a droga na bebida, apagou depois de engolir aquela coisa. Procurou-a no banheiro, em vão – havia desaparecido, àquela hora já estaria longe.

Respirou fundo e, enquanto recolhia seus pertences espalhados pelo quarto, pensava na melhor desculpa que poderia inventar para a esposa e para o gerente daquela espelunca – pagar a conta do hotel era impensável, não tinha dinheiro nem ao menos para tomar um ônibus. Acabou desistindo de registrar queixa na delegacia: seria uma dor de cabeça a mais e ainda teria de agüentar as piadas por ter sido enganado daquela maneira ridícula. Faria daquele subúrbio um lugar de peregrinação, um dia a encontraria pelas ruas. Aí sim, acertariam as contas. Do seu jeito. Lançou um último olhar para o interior do cômodo, a mão direita segurando a maçaneta da porta entreaberta; alguns segundos mais e, após girar a chave, caminhou alguns passos, tomou o elevador e desceu. Ainda acertariam as contas.

Vaca.


segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Um Passo

Entra.

Soundtrack: Russian Red - No Past Land



Tu nem sabes, mas já te dei tudo que era meu.

E em troca eu quis apenas esse eco torto de felicidade que me alisa a pele estremecida e pelo qual quase deixo de respirar, me arrepio inteira, viro apenas um corpo quieto guardado sob a mão invisível feita disso que eu sinto e que entra pela minha boca e sai pelos meus olhos e por qualquer gesto meu rasgado no espaço, qualquer gesto meu me abandona e vira teu, eu já te dei. É tudo tão simples e silencioso, e tudo grita por dentro, e o que posso fazer? Eu deixo... tu nem sabes, mas enquanto ainda estás aí do lado de fora, parado, esperando que eu te abra a porta e diga qualquer coisa nessa língua muda que tu entendes tão perfeitamente e que tão perfeitamente nos cabe, eu já não estou aqui, já me transportei para o lado em que não há aqui nem lá - em que unicamente há uma história para dois em qualquer lugar para onde quer que se virem os meus pés afoitos, pequeninos pés sem memória buscando reinventar o chão. O calor que eriça teus pelos sob as gotas d’água também rodopia entre meus dedos numa felicidade corrediça e quente, e sei que estás aí sorrindo e eu estou aqui sorrindo e quase hesitando mas é tarde, eu já te dei tudo que era meu inclusive aquele passo que restava pesado e desinibiu-se e virou destino cumprindo-se em linha reta, tudo que era meu eu já te dei. E sei que estás aí parado, molhado, esperando, e que a chuva que cai sobre a tua cabeça é nada, como é nada tudo o que não é chuva, nem tu, nem eu, nem essa porta se abrindo para o que eu não sei o que é mas quero muito saber, então entra; vem. Eu tremo, sim, mas não é frio, é por não me restar nada que eu não queira absurdamente te entregar, toma.

Toma.

(Baseado em fatos inesquecivelmente reais)

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A espanhola Lourdes Hernández, mais conhecida como Russian Red, canta um folk suave e lânguido em inglês e vem ganhando espaço nas paradas européias. I Love Your Glasses, o álbum de estréia, traz arranjos bonitos, muito violão acústico e um clima summer of love acentuado por sua voz aguda, ao mesmo tempo macia e vigorosa, de cantora dos anos 70. Pra ser ouvido do início ao fim.