terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O Sonho


O que me lembro é de ver muita, muita água.  E de ver aquela água toda subindo muito, muito rápido.

Eu estava de pé em frente à máquina de lavar roupas e, de repente, um cano estourou. Nem sei bem se foi um cano mesmo, não vi nada nem ouvi ruído nenhum; na verdade não me recordo bem do que realmente aconteceu na hora, só de subitamente sentir os pés molhados para, logo depois, entrar em pânico ao perceber que a água já estava pelos joelhos e, sem que eu tivesse tempo de piscar os olhos, pouco acima da minha cintura. Sei que não havia paredes porque, de onde estava, enxergava com nitidez a laranjeira e a casinha do cachorro – mas, espantosamente, a coluna de água se elevava à minha volta autônoma e faminta, senhora de si, como se eu fosse não mais que uma insignificância a ocupar seu território. Foi um sonho – mas, ao acordar, eu podia sentir meu corpo úmido e o pavor a me fazer respirar fundo, pelo nariz e pela boca e com a boca muito aberta, pronta para trocar qualquer pedido de socorro por todo o ar capaz de manter viva. É um sonho recorrente este, como se a ira divina, volta e meia, me observasse pelo buraco da fechadura. Os detalhes diferem grandemente entre si; o cerne, porém, é sempre o mesmo – água que surge de repente, imprevisível, e vai subindo, subindo, engolindo tudo enquanto eu, impotente e assustada, vejo minha existência inteira diluída, escorrendo pelos meus dedos em gotas miúdas.

Sempre tive medo de água. Nos pesadelos de infância o bicho-papão era sempre um rio, um mar, uma lagoa, até mesmo uma banheira. Água, só no chuveiro ou na geladeira. Um medo incoerente, reconheço. Nascemos da água: passamos 280 dias mergulhados em líquido amniótico no calor do útero materno. Nós, seres humanos, somos, em média, 70% água. Dizem os evolucionistas que foi na água que a vida começou – num caldo quente e multivitaminado onde o que não virou sopa se transformou em tudo o que nasce, cresce, reproduz e morre sobre a Terra, e há quem diga que é debaixo d’água que o mundo se acabará. A onipresença da água é inconteste mesmo quando não nos damos conta disso. Quando, por exemplo, nos resignamos diante das dificuldades pensando: depois da tempestade vem a bonança, água mole em pedra dura tanto bate até que fura (ou não, pois dar com os burros n’água é sempre uma possibilidade). E que expressão define melhor a deliciosa sensação de leveza e bem estar que sobrevém após a tempestade do que “alma lavada”? Chamamos “líquidas” às coisas perfeitamente determinadas e “liquidado” àquilo que já chegou ao seu fim. As emoções humanas, quando em sua máxima potência, são expressas por água – damos vazão a elas através de lágrimas, desarranjos intestinais ou até xixi nas calças. Água, água, água. Potável, boricada, de melissa, tônica, com gás, sem gás, aquela que passarinho não bebe. Assumo com a cara mais lavada que tenho medo de água e, se você não tem, lavo minhas mãos. Somos água e óleo, fazer o quê.


Digo, porém: apesar do medo, admiro a água. Admiro sua força, sua fluidez e capacidade transformadora. A água, como raros agentes nesse mundo, percorre o quer que seja em toda a sua intimidade. Respeito a água porque a água – como a vida –  não respeita o caos. Diante do caos, ou até mesmo por causa dele, a vida resiste sem remorso. E a água, aos poucos, após o caos, a sujeira e o pânico, vai recolocando cada coisa em seu devido lugar.




imagem: Google

5 comentários:

Anônimo disse...

Flá,

eu acho mesmo que a gente tem dessas coisas que dançam, imponentes, ao nosso redor - e dão medo. Mas, se tem algo que aprendi, e você ajudou a ensinar com palavras sempre doces, foi que temos força contra elas. Jogue esse pesadelo para longe - aprenda a nadar.

Lindo texto. Como sempre.

Um beijo!

Fernanda Fraga disse...

Essas águas de um jeito ou de outros nos salvam, nós renascem.
Beijos.

WOLF disse...

Dona Cascuda (namorada do Cascão - têm medo de água - entendeu?),

Faltou você mencionar aquela expressão "líquida" que eu adoro a respeito de coisas inevitáveis: que são como um rio que corre para o mar...

Mas, olha, eu adoro sonhos. Acho que são metáforas por excelência e adoro mais esse negócio de sonhos recorrentes, acho um charme, coisa de almas atormentadas. Tenho certeza absoluta que eu tenho um sonho recorrente, o problema é que meu sono é pesado demais pra eu lembrar dele de manhã, e o meu ronco alto atrapalha um bocado, também.

Nossa, toda essa conversa deu uma sede, vou ali beber uma água. Adorei o teu texto, como sempre muito perspicaz, capaz de extrair leite (ou água - tão fácil quanto irresistível!) de pedra.

Beijo!

Flávia disse...

MONI,


A gente tem medo mas, como ensinou aquele desenho animado muito nosso conhecido, continuamos a nadar :)

FERNANDA,

Renascer é preciso!

RIDICULOUS THOUGHTS,

Meus amigos, aqueles que sabem dessa fobia, também me chamam assim, hahaha. Eu diria que você deve ter sonhado com isso se não estivesse tão claro como água (trocadilho ireesistível!). Esse é só um dos meus sonhos recorrentes, mas o que mais me apavorava, mesmo, era um no qual minha mãe fazia uma dieta e acabava virando uma maçã com perninhas e bracinhos. Sonhos... quem pode com eles?

Beijos, suas lindas.

Canal Cereja disse...

Girl, não se assuste, você não é a única. Não estou confessando nada, apenas me sensibilizo com a sua declaração. Todos temos medo de algo banal, que poucos consideram, mas somente nós mesmo para sabermos o que se passa conosco nos momentos de desespero. Ufa. rs
Sonho muito, e penso que vou morrer de tsunami pq o tanto de sonhos que já tive enfrentando uma tsunami, não cabe nos dedos. Mas não se desespere, sonhos sempre mudam.
E bem, sua história realmente me lembrou alguém, uma Alice e seu coelhinho branco. rs. Bjos linda.